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Jan

Propriedade Horizontal – resumo das alterações ao regime – Lei n.º 8/2022, 10.01 Márcia Passos

Márcia Passos
Advogada até outubro de 2019. Professora Convidada do ISAG. Deputada à Assembleia da República XIV Legislatura (membro da 13.ª Comissão da Administração Pública, Modernização Administrativa e Poder Local); Deputada da Assembleia Municipal da Maia nos mandatos 2009-2013, 2013-2017, 2017-2021 e 2021-2025 (Primeira Secretária); Deputada da Assembleia de Freguesia de Vila Nova da Telha nos mandatos 2005-2009 e 2009-2013 (Presidente da Assembleia de Freguesia).

A exposição de motivos do projeto de lei n.º 718/XIV/2.ª anunciava mudanças significativas e respostas não só ao setor – administradores de condomínio e condóminos – mas também a todos os profissionais que se deparam com questões jurídicas relacionadas com o regime da propriedade horizontal, nomeadamente com a modificação do título constitutivo, com os procedimentos de cobrança de dívidas, com a responsabilização do administrador do condomínio, com os requisitos de exequibilidade das atas das assembleias de condóminos, com a legitimidade processual ativa e passiva em sede judicial e com a responsabilidade pelos encargos do condomínio em caso de alienação da fração autónoma.

O primeiro anseio foi o de criar uma forma de suprir a falta de unanimidade necessária para a alteração do título constitutivo da propriedade horizontal. Na verdade, segundo o disposto no n.º 1 do artigo 1419.º do CC e salvo a situação contemplada no n.º 3 do artigo 1422.º-A (em que é permitida a divisão de frações em novas frações autónomas se tal for autorizado pelo título constitutivo ou pela assembleia de condóminos em deliberação aprovada sem oposição) e do disposto em lei especial, o título constitutivo da propriedade horizontal só pode ser modificado se tal modificação for acordada por todos os condóminos. Ora, a Lei n.º 8/2022, de 10 de janeiro, veio criar um mecanismo facilitador da alteração do título constitutivo, quando tal alteração incide sobre partes comuns. Assim, sendo certo que tal alteração continua a carecer do acordo unânime dos condóminos, passará a ser agora possível que a falta de acordo seja suprida judicialmente. Mas tal só será exequível nas seguintes condições: quando os votos representativos dos condóminos que discordam da modificação sejam inferiores a 1/10 do capital investido e a alteração não interfira com as características das respetivas frações no que concerne às condições de uso, ao valor relativo [1] ou ao fim a que as mesmas se destinem.

Por outro lado, foi evidente a intenção do legislador em terminar com algumas controvérsias pendentes durantes largos anos na doutrina e na jurisprudência, como é exemplo a controvérsia sobre a responsabilidade pelas dívidas ao condomínio. Sendo a obrigação de pagamento uma obrigação propter rem, a discussão reside em saber se tais obrigações são ambulatórias ou não, ou seja, se acompanham ou não o direito real ao qual estão intrinsecamente associadas [2]. Com a alteração ao artigo 1424.º do CC, cuja epígrafe é “encargos de fruição e conservação”, a referida discussão não tem, salvo melhor opinião, razão para continuar a existir, pelo menos nos moldes que até então existia.

Na verdade, o legislador vem agora consagrar que “…as despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns do edifício e relativas ao pagamento de serviços de interesse comum são da responsabilidade dos condóminos proprietários das frações no momento das respetivas deliberações, sendo por estes pagas em proporção do valor das suas frações”. Não restam, assim, dúvidas de que é sobre quem é proprietário das frações, no momento das deliberações que aprovam tais despesas e encargos, que reside a responsabilidade pelo pagamento. Por outro lado, o legislador veio também consagrar no novo artigo 1424.º-A que “a responsabilidade pelas dívidas existentes no momento da alienação da fração é aferida em função do momento em que a mesma deveria ter sido liquidada…”, devendo o administrador de condomínio emitir declaração escrita da qual conste o montante de todos os encargos de condomínio em vigor relativamente à fração, bem como das dívidas existentes. Este documento passa, assim, em princípio, a constituir documento instrutório obrigatório da escritura ou do documento particular autenticado (DPA) de alienação da fração. Só assim não será se o adquirente declarar expressamente, na escritura ou no DPA, que prescinde de tal declaração do administrador o que, a acontecer, equivalerá à aceitação da responsabilidade por qualquer dívida do vendedor ao condomínio.

Esta novidade, há muito desejada, originou uma alteração ao Código do Notariado, o qual, no seu artigo 54.º passou a fazer referência expressa à declaração prevista no artigo 1424.º, n.º 2 do CC, a qual deverá constar do registo predial.

A Lei n.º 8/2022 veio também clarificar aquilo que se deve entender por reparações indispensáveis e urgentes, como sendo aquelas que são necessárias à eliminação, num curto prazo, de vícios ou patologias existentes nas partes comuns, as quais possam, a qualquer momento, causar ou agravar danos no prédio, ou em bens, ou colocar em risco a segurança das pessoas (artigo 1427.º, n.º 2 do CC).

As clarificações não ficaram por aqui e as alterações visaram ainda contribuir para definir regras quanto à legitimidade processual ativa e passiva, a qual, como sabemos, fez e faz correr muita tinta quando, em litígios entre condóminos e condomínio, está em causa julgar a exceção dilatória de ilegitimidade e decidir pela absolvição do réu da instância. O artigo 1437.º cuja epígrafe deixa de ser “legitimidade do administrador” para passar a ser “representação do condomínio em juízo”, consagra que o condomínio é sempre representado em juízo pelo seu administrador, devendo demandar e ser demandado em nome daquele. A legitimidade, ativa ou passiva, é do condomínio, o qual tem como seu representante o administrador que representa a universalidade dos condóminos. Além disso, passou a consagrar-se também que a apresentação de queixas-crime relacionadas com as partes comuns não carece da autorização da assembleia de condóminos, devendo ser apresentadas pelo administrador.

Do ponto de vista das assembleias de condóminos, definiram-se novas regras as quais respondem às necessidades provocadas por momentos de restrições à circulação de pessoas, como o momento que vivemos. Simplifica-se, assim, a forma de convocar as assembleias e o respetivo funcionamento, a saber:

– Convocatória: para além da carta registada, passa a ser possível convocar a assembleia por meio de correio eletrónico para os condóminos que manifestem essa vontade em assembleia de condóminos realizada anteriormente, devendo tal manifestação de vontade ficar lavrada em ata, com a indicação do respetivo endereço de correio eletrónico. A nova regra impõe ao condómino o dever de enviar recibo de receção do respetivo email convocatório (artigo 1432.º);

– Funcionamento: passa a ser possível realizar a assembleia de condóminos por meios de comunicação à distância, preferencialmente por videoconferência. Será assim sempre que a administração do condomínio o determine ou a maioria dos condóminos o requeira, desde que todos os condóminos tenham condições, por si ou porque a administração do condomínio isso assegurou, para participar na assembleia por meios de comunicação à distância. Caso contrário, a assembleia terá que ser presencial (artigo 1.º-A do DÇ n.º 268/94 de 25 de outubro).

Quanto às atas das assembleias de condóminos, as regras também foram alteradas da seguinte forma:

– Elaboração e assinatura das atas: as atas são redigidas e assinadas por quem tenha intervindo como presidente nas assembleias e subscritas por todos os condóminos nelas presentes;

– Menções obrigatórias na ata: deve conter um resumo do que de essencial se tiver passado, a data e o local da realização da reunião, os condóminos presentes e ausentes, os assuntos apreciados, as decisões e as deliberações tomadas, com o resultado de cada votação e o facto de a ata ter sido lida e aprovada. A aprovação da ata é condição de eficácia das deliberações tomadas na respetiva reunião da assembleia de condóminos. Esta regra tem a vantagem de reduzir significativamente, como se espera, as dúvidas acerca da exequibilidade da ata enquanto título executivo para ação executiva para pagamento de quantia certa;

– Assinatura da ata: pode ser efetuada através de assinatura eletrónica qualificada [3] ou através assinatura manuscrita, aposta sobre o documento original ou sobre documento digitalizado que contenha outras assinaturas;

– Subscrição da ata: vale como subscrição da ata a declaração do condómino, enviada por correio eletrónico, para o endereço da administração do condomínio, em como concorda com o conteúdo da ata que lhe tenha sido remetida pela mesma via (artigo 1.º do DL n.º 268/94, de 25 de outubro);

– Exequibilidade: a ata da reunião da assembleia de condóminos é título executivo contra o proprietário que deixar de pagar, no prazo estabelecido, a sua quota-parte, quando tiver deliberado o montante das contribuições a pagar ao condomínio, o montante anual a pagar por cada condómino e a data de vencimento das respetivas obrigações. Além disso, consideram-se abrangidos pelo título executivo os juros de mora, à taxa legal, da obrigação dele constante, bem como as sanções pecuniárias, desde que aprovadas em assembleia de condóminos ou previstas no regulamento do condomínio (artigo 6.º do DL n.º 268/94, de 25 de outubro).

Em relação ao administrador do condomínio, este vê os seus poderes-deveres reforçados com a presente alteração. Desde logo, resulta claro que o administrador deve instaurar a ação destinada a cobrar as quantias em divida pelos condóminos e deve fazê-lo dentro de determinado prazo. Segundo o artigo 6.º, n.º 5, o administrador deve apresentar a indicada ação judicial no prazo de 90 dias a contar da data do primeiro incumprimento, não necessitando, por isso, de autorização ou qualquer deliberação da assembleia de condóminos para o fazer, desde que o valor em dívida seja igual ou superior ao valor do indexante dos apoios sociais do respetivo ano civil. Só assim não será se a assembleia deliberar em sentido contrário.

Além disso, o administrador vê as suas funções alargadas no que respeita também à vida corrente do condomínio. É exemplo disso a obrigação de exigir dos condóminos a sua quota-parte nas despesas aprovadas e a obrigação de executar as deliberações da assembleia que não tenham sido objeto de impugnação, devendo fazê-lo no prazo máximo de 15 dias úteis ou no prazo que tiver sido fixado para o efeito pela assembleia.

Incumbe também ao administrador o dever de informar os condóminos sempre que o condomínio for citado ou notificado no âmbito de um processo judicial, arbitral, procedimento de injunção, procedimento contraordenacional ou administrativo. Verifica-se, assim, a existência de um reforço dos direitos dos condóminos, a quem assiste o direito de ser informado acerca da existência e do estado dos referidos processos. Na verdade, pelo menos semestralmente, o administrador deve informar os condóminos acerca dos desenvolvimentos de tais processos, salvaguardando-se, obviamente, os que estiverem sujeitos a segredo de justiça e aqueles cuja informação deva ser mantida sob reserva como, por exemplo, os procedimentos cautelares.

Em situações de urgência, o administrador deve intervir, convocando posteriormente e imediatamente uma assembleia extraordinária para a necessária ratificação da sua atuação.

No que respeita às deliberações relativamente a obras de conservação extraordinária ou obras que constituam inovações, o administrador está obrigado a apresentar pelo menos três orçamentos de diferentes proveniências para a execução das obras. Só assim não será se o regulamento de condomínio ou a assembleia de condóminos dispuser de forma diferente.

Finalmente, o legislador veio salientar que o incumprimento das funções por parte do administrador, torna-o civilmente responsável em caso de omissão, sem prejuízo da responsabilidade criminal, caso exista. Na verdade, tal responsabilidade civil e/ou criminal decorreria sempre, como até aqui, da lei civil e da lei penal. A consagração que agora se faz de tais consequências no n.º 3 do artigo1436.º, mais não é do que alertar o administrador de condomínio e os condóminos para as mesmas, refletindo, pois, as preocupações de clarificação explanadas na exposição de motivos do projeto de lei que veio originar a Lei n.º 8/2022, de 10 de janeiro.


[1] O valor relativo é expresso em percentagem ou permilagem, tal como é referido no artigo 1418.º, n.º 1 do CC: “No título constitutivo serão especificadas as partes do edifício correspondentes às várias fracções, por forma que estas fiquem devidamente individualizadas, e será fixado o valor relativo de cada fracção, expresso em percentagem ou permilagem, do valor total do prédio”.

[2] A propósito da controvérsia doutrinal e jurisprudencial remete-se para o artigo intitulado “A quem deve a Administração do Condomínio exigir o pagamento no caso de aquisição/alienação de frações autónomas mantendo o alienante dívidas para com o Condomínio?” de Pedro Gonçalves, Rosa Maria Rocha e Maria Malta Fernandes, publicado na Revista Jurídica Portucalense Law Journal n.º 18, Porto, 2015, in file:///C:/Users/marcia.passos/Downloads/7493-Texto%20do%20Trabalho-23135-1-10-20160201.pdf

[3] O regime jurídico dos documentos eletrónicos e da assinatura digital foi aprovado pelo DL n.º 290-D/99, de 2 de agosto, para o qual se remete, para os devidos efeitos. Além disso, reveste idêntico interesse para consulta o DL n.º 12/2021, de 9 de fevereiro que assegura a execução na ordem jurídica interna do Regulamento (UE) 910/2014, relativo à identificação eletrónica e aos serviços de confiança para as transações eletrónicas no mercado interno.

 

Fonte do artigo aqui.